Referências de audiovisuais: um olhar sobre a revisão da NBR6023

21 12 2015

Num momento de puro altruísmo e sincera preocupação com a humanidade, decidi me debruçar sobre o projeto de revisão da norma para referências bibliográficas (NBR6023), que a ABNT recentemente submeteu à consulta pública. Analisar norma de referência é um dos trabalhos mais chatos que já inventaram para um bibliotecário fazer, quase tão ruim quanto fazer inventário ou elaborar regulamento. Mas, pensando que se é chato para mim que dirá para o pobre do estudante ou pesquisador que precisa apenas usar a norma, enfrentei a empreitada, pensando em Sísifo, Prometeu, Hércules e tantos outros personagens mitológicos que enfrentaram barras bem piores.

 

Hercules combatant Achelous

 

O post mais popular do Blog da Biblioteca da ECA é sobre citação e referência de filmes e teve, até o momento, 19.293 acessos e 42 comentários de pessoas com dúvidas sobre o assunto, seguido pelo post sobre citação e referência de documentos musicais, com 10.869 e 21 consultas. O terceiro colocado, que explica como localizar livros nas estantes e foi publicado um ano antes, teve modestos 1943 acessos.

Esses números me fazem acreditar que o interesse no tema é grande, e o tipo de consulta que recebemos nos comentários deixa claro que as dificuldades são muitas. De fato, as regras para documentos audiovisuais são bastante falhas na norma vigente e tudo indica que não vão melhorar muito depois da revisão, pelos motivos de sempre:

1. Ninguém liga para documentos audiovisuais.
2. Ninguém entende nada de documentos audiovisuais.
3. Ninguém dá a mínima para as dúvidas dos usuários de audiovisuais.

Além disso, o processo de discussão dos resultados da consulta pública está sendo conduzido de forma autoritária e pouco eficiente. Quem participou da consulta pública foi convidado para uma reunião na qual supostamente seriam discutidas as sugestões apresentadas. Mas, na verdade, houve muito pouco espaço para uma real discussão do conteúdo da norma, porque os organizadores consideram  que já está tudo decidido. Apenas as observações de caráter formal e as questões que apontavam inconsistências no texto foram consideradas, o que me faz pensar por que, afinal, passei dois dias acompanhando, atônita, acalorados debates sobre pontos e espaços.

A “discussão” não chegou ainda ao capítulo dos audiovisuais. Se chegar lá, eu gostaria muito e poder trocar ideias com pessoas que realmente conheçam o documento audiovisual e seus usuários, mas sei que isso não vai acontecer. Se 9 anos (?!) não foram suficientes para construir uma norma adequada e de fácil compreensão, talvez só nos reste fazer como Manuel Bandeira e tocar um tango argentino ou pensar numa alternativa mais prática à ABNT.

Apontei alguns pontos no texto que considerei falhos mas, de fato, todo o capítulo dos audiovisuais precisaria ser repensado e refeito. Logo no escopo do capítulo se lê:

Inclui imagens em movimento e registros sonoros nos suportes: disco de vinil, DVD, blu-ray, entre outros.

Bobagem. Numa área onde suportes novos aparecem todos os dias seria melhor não especificar nenhum. Se querem dar exemplos de suportes, coloquem pelo menos os mais conhecidos atualmente, não apenas três.

A norma aponta como elementos essenciais da referência de filmes: título, diretor, produtor, local, produtora, data e especificação do suporte em unidades físicas (destaques meus). O produtor como elemento obrigatório é problemático, porque existem diversas funções na esfera da produção de uma obra audiovisual: produtor, diretor de produção, produtor executivo, produtor associado, co-produtor supervisor de produção etc. Isso pode confundir o usuário. “Qual desses produtores eu coloco na referência” é uma pergunta que eu escuto bastante. Na maior parte dos casos, o produtor ou o diretor de produção seriam os mais indicados, mas a norma dá um exemplo citando o produtor executivo. Confusão formada.

Trecho da ficha técnica do filme Reflexões de um liquidificador, extraída da Filmografia Brasileira (Cinemateca Brasileira).

Trecho da ficha técnica do filme Reflexões de um liquidificador, extraída da Filmografia Brasileira (Cinemateca Brasileira).

Outra bagunça terminológica é o uso do termo produtora. Existem empresas produtoras e empresas distribuidoras (embora algumas façam as duas coisas). Na referência de um filme em DVD o mais lógico é informar o nome da empresa responsável pela distribuição no mercado de vídeo doméstico, porque é preciso identificar corretamente o material referenciado. Nos exemplos aparecem as distribuidoras, exceto no de filme em película. Para referenciar uma cópia em película consultada no acervo de uma cinemateca, por exemplo, é melhor citar a(s) empresa(s) produtora(s). Essas distinções nem sempre são simples de entender, e a norma não deveria aumentar a confusão. Por que usar o termo produtora quando, na maioria dos casos, o que é mencionado na referência é a distribuidora?

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Trecho da ficha técnica do DVD do filme O sacrifício, extraída do site da Livraria Cultura.

Minha sugestão para o enunciado deste item seria algo assim: ” Os elementos essenciais são: título, diretor OU produtor OU roteirista, local de distribuição, empresa distribuidora, data de distribuição e especificação do suporte. Na ausência de pessoas creditados como diretor, produtor ou roteirista, inserir outro nome que possa ser identificado como responsável pelo conteúdo”. Mas não tenho certeza de que isso seria possível, porque existem “diretivas” para elaboração de normas (sim, normas para elaborar normas) e nem sempre o que a gente acha interessante é permitido.

De qualquer forma, seria importante permitir ao usuário escolher um ou mais indivíduos,  ou uma instituição (ou instituições), com ampla responsabilidade sobre o conteúdo do documento para mencionar na referência, e deixar claro, nos exemplos, que existe essa opção. Há dois exemplos de filme de longa-metragem no texto do projeto de norma, ambos com vários nomes da equipe citados, o que é um exagero completamente inútil numa referência.

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Os demais exemplos, com menos dados, são de curtas-metragens, séries de TV e vídeos de música, o que pode dar ao usuário a ideia errada de que precisa encher de nomes a referência de um longa. Pobre usuário, sempre perdido na selva da normalização, sempre dependendo de nós, às vezes precisando contratar um bibliotecário para revisar suas referências.

Há diversas falhas nos exemplos do projeto, algumas pequenas, outras nem tanto. Parecem ter sido elaborados por pessoas que não conhecem muito esse tipo de documento. Um dos exemplos é de uma coleção de slides – chamados no texto pelo nome em português que ninguém mais usa desde que eu era criança, “diapositivos” – acompanhados por áudio em fita cassete. O que diabos é isso? Algo que era bastante usado como material didático antes da popularização do videocassete. Qual é a possibilidade de alguém ainda precisar referenciar esse tipo de material? Remota. Nunca me perguntaram sobre isso nos últimos 30 anos. Claro que é preciso ter exemplos de materiais antigos na norma, mas dentro de um universo de apenas 8, dedicar um exemplo inteirinho para um tipo de documento que nem deve existir mais não muito faz sentido.

No exemplo da série Breaking bad, foram citados os produtores executivos. Ninguém que conheça séries faria isso, já que o normal seria mencionar o criador da série, como mostra claramente o registro da IMDB. Por que confundir assim o usuário?

Nos dois exemplos para vídeos publicados no Youtube a interpretação da responsabilidade é discutível.

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Nesse exemplo, não está claro nos créditos que o vídeo seja uma produção de Leerestademoda. No letreiro final do vídeo a única informação disponível é o endereço do site leerestademoda.com, mas não há nenhuma indicação que nos permita concluir que se trata da entidade produtora do documento.

Snap 2015-12-21 at 13.15.10Nesse outro caso, parece realmente haver um equívoco, já que Laura Cohen é autora do manifesto, não do vídeo.

Posso estar sendo chata, mas em 9 anos de trabalho de revisão o pessoal não conseguiu encontrar uns exemplos melhores?

Ainda em relação aos vídeos do Youtube, senti falta de orientações sobre o canal, um elemento importante. O canal representa o indivíduo ou instituição que publica o documento na plataforma, que pode ser ou não o responsável pela realização do vídeo. Em alguns casos, é uma informação que pode garantir a confiabilidade do documento publicado e, por esse motivo, muitos usuários perguntam como mencioná-la na referência.

Temos pouco mais de 2 páginas para modelos de referências de documentos audiovisuais e no mínimo 15, se contei direito, para documentos textuais. Para as inadequadamente chamadas “monografias” (*) temos umas 4 páginas de modelos, com subdivisões para monografia no todo, parte de monografia, monografia em meio eletrônico e parte de monografia em meio eletrônico. Entretanto, elaborar uma referência de filme não é tarefa menos complexa, e um documento audiovisual também pode ser referenciado em parte, no todo, em meio eletrônico etc. O conteúdo de um documento audiovisual pode se apresentar em tantas ou mais formas do que um documento textual: evento, reportagem, capítulo de novela, videoarte, documentação de performance, concerto, clip, ópera, entrevista, depoimento, comercial, tomadas não editadas, cenas excluídas, extras de DVDs, aulas etc. Não imagino que seja possível ter exemplos para todos esses casos, porque não queremos uma norma com 512 páginas, mas talvez fosse possível reorganizar o texto, iniciando com uma seção de modelos genéricos que servissem para documentos com características de conteúdo semelhante, independentemente do suporte.

Outra orientação que me incomoda, suponho que tirada da catalogação, é a entrada pelo título para qualquer documento audiovisual. Na verdade, existem audiovisuais que são obras coletivas e outros que não são, assim como acontece no mundo dos textos.

Vou parando por aqui, para não matar meus leitores de tédio. Assim que reunir coragem e determinação suficientes, publicarei meus comentários sobre referências de documento sonoro, partitura e documento iconográfico. Não sou, de forma alguma, especialista em normalização, sou apenas uma bibliotecária de referência que conhece documentação audiovisual e gosta de auxiliar usuários. Portanto, se alguém quiser corrigir algum erro meu ou acrescentar comentários, ficarei muito grata.

Normas para quem? (post do Blog da Biblioteca da ECA)

(*) Um livro de poemas ou de contos, uma coletânea de peças teatrais ou de textos diversos não são monografias, mas há uma regra besta qualquer determinando que seja usada essa palavra.